Novos episódios do podcast "Página Sonora": primeiras linhas que convidam à leitura


06/08/2021 - Atualizado em 18/08/2021 - 601 visualizações

A angústia e os encantamentos desde a primeira linha...

O primeiro parágrafo de um romance, de um conto, de uma crônica, ou a primeira estrofe de um poema é sempre uma iniciação, um convite que nos convoca à leitura, ou que nos afasta de vez da viagem por vir. Há inícios que nos enlevam e nos surpreendem de tal maneira que ficam na memória como registro e referência, quase como se tivessem uma vida própria, separada de todo o resto do livro.

O que dizer da primeira estrofe de “Sentimento do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade?

“Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.”

Ou do primeiro parágrafo de “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector?

“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.”

São aberturas para o rito da aventura que se inicia. Um mau começo pode determinar uma desistência ou, no mínimo, uma resistência ao prazer do texto.

A seguir, nossos entrevistados, participantes deste mês no "Página Sonora", respondem sobre suas preferências de leitura e seus processos iniciais na mesa de trabalho.

Qual primeiro parágrafo ou primeira estrofe você diria que foi especial em sua experiência com a leitura? E qual sua superstição, seu hábito, método ou rito para iniciar um texto?


Resposta do escritor Alcides Buss:

“ – Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja.”

Com estas palavras se abre o caminho para o “Grande Sertão: Veredas”, o grande e belo romance de Guimarães Rosa. A leitura nos faz saber que o “sertão” está em todo lugar; é o mundo em que vivemos. E também está dentro de nós. Não é nada (nonada). Os tiros anunciam a trama entre o bem e o mal. A luta jamais termina e o leitor é feito cúmplice e também ator. Cabe-lhe, se quiser, o poder de mudar a realidade.

Todo romance ou conto, na primeira frase anuncia o que será. Também o poema, no primeiro verso traduz o impulso que levará aos versos seguintes.

Escrevo a mão, depois se necessário passo para o computador. Sou de opinião que o poeta escreve com o corpo inteiro, ou seja, mais do que com a cabeça. Por isso, talvez, as palavras é que me escrevem. Para tanto, porém, preciso alimentar uma ideia, um desejo, uma sonoridade. E deixar amadurecer. Mais adiante, um dia, uma semana ou mais, há um momento de entrega e o poema acontece. 

Resposta do escritor Marcelo Labes:

Há dois inícios de livros – não saberia elencar qual o mais impactante ou importante para mim – que sem dúvida me formaram. 

Poderia falar aqui do despertar de Gregor Samsa, que veio de uma noite de sonhos intranquilos, mas não: falo do primeiro parágrafo de “Cem anos de solidão”, de García Márquez (que li umas boas cinco vezes, de tão apetitoso que é seu início; na verdade, o primeiro parágrafo é uma armadilha) e do primeiro parágrafo de “O estrangeiro”, de Albert Camus, que com aquele “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem” dá o tom de um protagonista que começa a ser julgado desde estas primeiras palavras. Julgado e condenado, se não por um tribunal, pelos leitores que o acompanham.

Escrever é somente o final de um processo criativo. A menor parte, talvez. Assim, quando o texto exige ser escrito, não há muito que possa ser feito para evitar. Gosto de escrever em minha mesa de trabalho, aqui na sala de casa, e volta e meia prefiro que esta mesa esteja organizada – coisa rara de acontecer –, como que para a bagunça nela não atrapalhe a bagunça dentro de minha cabeça que vai, aos poucos, virando texto. 

Resposta da escritora Ibriela Bianca Sevilla:

Sempre lembro do início dos Cien años de soledad:

“Muchos años después, frente al pelotón de fusilamiento, el coronel Aureliano Buendía habia de recordar aquella tarde remota en que su padre lo llevó a conocer el hielo.”

Para mim, esse início expressa uma sensação; um misto de temor, aflição e curiosidade frente ao inesperado do romance. Essa imagem de estar frente a um pelotão de fuzilamento e a lembrança que a situação faz irromper na memória me parece algo tão sensível e ao mesmo tempo de uma fortaleza exasperante. Não é à toa que a obra Gabriel Garcia Marquez é um dos patrimônios literários que temos.

Amo também os primeiros versos de vários e vários poemas, mas lembro sempre dos primeiros do "Poema Submerso" do Roberto Piva, que diz assim:

“Eu era um pouco da tua voz violenta, Maldoror
quando os cílios do anjo verde enrugavam as
chaminés da rua onde eu caminhava.”

Aí há também a irrupção de uma memória, da lembrança de uma sensação desencontrada, um não-sei-o-quê que sempre sobra depois da leitura de um grande poema.

Não tenho superstições ou ritos para iniciar meus poemas. Eles são geralmente composições que tratam de expressar uma sensação sobre algo que me ocorre, algo que mexe com meu espírito, uma constatação, uma perplexidade frente à realidade que me cerca. Para mim a poesia é um modo possível de lidar com as violências cotidianas, com o tanto de silêncio que tenho que fazer diante das injustiças que me perturbam; coloco na poesia tudo que tenho que calar no cotidiano da vida. Escrever poesia é recorrer a linhas de fuga para uma dimensão outra do real, onde eu não existo mais como pessoa, onde reinvento um modo de seguir vivendo. 

Resposta da escritora Claudia Iara Vetter:

O poema que escolhi não é o primeiro da obra, mas me marcou muito (e assim segue até hoje), pois trata da perspectiva da mulher na literatura e o árduo reconhecimento desse ofício.

Poemas aos homens do nosso tempo de Hilda Hilst:

“Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo.”

Não tenho um hábito específico que precede a criação literária, o que prezo neste processo é justamente a entrega ao instante em que a inspiração surge. Por vezes, essa "aparição" acontece de forma inusitada e acaba impulsionando ideias e registros em diversos formatos, como anotações manuscritas, blocos de notas variados, registros em áudio... materiais estes que se tornam a matéria-prima impulsionadora do momento de tornar as ideias em textos. 

Resposta da escritora Raíssa Eris Grimm

“O avesso é a verdade da costura.
O silêncio é a palavra
maturada pelo pensamento.”
(“escuta” – poema de Lívia Natália, em Sobejos do Mar – p. 13)

Tal como o universo que jamais começou, de acordo com Clarice, a acontecência de minhas poesias não possuem início – começam sempre pelo meio, arrebatadas do que é fissura, imprevisível, no trabalho corporal da voz que busca oferecer suporte e eco a camadas sedimentadas de não-dito – desatando, dos silêncios, passagem a outros mundos (im)possíveis.

Não desenvolvi ainda ritual para esse tipo de feitiço – todo poema que escrevo, é um ato de improviso. 

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Saiba Mais:

Como surgiu o "Página Sonora"


A iniciativa "Página Sonora" vem sendo construída desde novembro de 2019, quando os assistentes de biblioteca e alguns técnicos de cultura do Sesc Santa Catarina realizaram um encontro com o objetivo de debater e reinventar caminhos para a efetiva formação de leitores críticos e contumazes, com conhecimento e reconhecimento do que é a experiência da leitura. E para que essa transformação de fato aconteça, há longos caminhos a serem percorridos, começando por capacitar a equipe de assistentes de biblioteca para mediação do livro, da leitura e da literatura.

Surgiu então a necessidade de buscar compreender a maior carência e urgência dentro de um universo tão vasto. E dentre as inúmeras sugestões, possibilidades, alusões e argumentações, uma tarefa ficou clara e unânime: ler, reler, conhecer, discutir e então, dar acesso aos leitores ou ainda não leitores, à escrita produzida em Santa Catarina. Os projetos e eventos planejados para 2020 com essa finalidade e tantas outras demandas, desde revigorar a literatura voltada para o público infantil até tornar a biblioteca um espaço cada vez mais de acolhimento, fruição, informação e diversão, foram adiados com a pandemia. Mas aos poucos, com o afeto e a persistência necessários a quem trabalha com cultura em nosso país, os meios foram sendo criados e uma parte das muitas tarefas daquele encontro se concretiza no "Página Sonora".

Texto de Luciana Tiscoski, técnica de Cultura do Sesc Estreito (Florianópolis) e Palhoça.


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