Leitura, voz e poesia no próximo episódio do "Página Sonora"


17/12/2020 - Atualizado em 18/12/2020 - 613 visualizações

"Página Sonora" é o podcast da literatura feita em Santa Catarina, através da Rede de Bibliotecas do Sesc-SC, dedicado inteiramente a autores que aqui tecem ou teceram suas histórias, seus relatos, pensamentos, pesquisas, diálogos e trocas, nos mais variados gêneros, estilos e linguagens. Nesta sexta-feira, dia 18 de dezembro, o “Página Sonora” lança mais cinco episódios de leituras. Desta vez, os autores contemplados serão Cruz e Sousa, Telma Scherer, Paulino Junior, Ana Oliveira e Flávio Dias.

Em seu livro Performance, recepção, leitura, Paul Zumthor alerta para o que se perde com os textos sendo reproduzidos pelos meios eletrônicos: “a corporeidade, o peso, o calor, o volume real do corpo, do qual a voz é apenas expansão”. Porque para o estudioso da vocalidade poética, devem estar implicados na experiência da leitura, “a pessoa e o jogo do intérprete, o auditório, as circunstâncias, o ambiente cultural e, em profundidade, as relações intersubjetivas, as relações entre a representação e o vivido”, componentes que formam quase uma cena ou uma performance teatral. O PodCast, sendo um meio de difusão eletrônico, não teria portanto, esse alcance em termos de experiência estética como explicita Zumthor. Mas se estabelecem outros níveis de comunicação, não menos enriquecedores. Há uma trama de relações que aumenta a cada episódio postado, a cada leitura, a cada escuta que nos retorna com suas impressões, a cada percepção que atingimos e nutrimos enquanto curadores, leitores e ouvintes.

Utilizamos este espaço do blog de atualização dos episódios do "Página Sonora" justamente para abrir possibilidades de complementar minimamente o que pode suscitar essa seleção de autores, suas leituras e performances com a voz. E para instigar nos ouvintes e/ou leitores a curiosidade de adentrar o universo proposto por esses agentes da cena poética, que se desdobra em gêneros os mais variados, assim como são diversos os estilos, os temas, os ritmos e a sonoridade de seus textos. Abrimos, portanto, para esses autores, um convite para que falem de literatura, poesia, leitura, recepção, vocalidade e oralidade entre inúmeros outros assuntos que cabem nas literaturas.

Emparedado

Um dos contemplados da nova série é um representante por excelência do cânone literário brasileiro, o simbolista Cruz e Sousa. A assistente de biblioteca Neusa Küll, do Sesc Estreito (Florianópolis) selecionou trechos do poema em prosa “Emparedado”, que encerra o livro Evocações, publicado em 1898. O texto na íntegra é um profundo e crítico protesto contra as teorias racistas e a discriminação contra os negros, tão intensas e vigentes no final do século XIX. A revolta e a angústia do poeta que viveu sob a forte presença e herança do escravagismo, sendo ele mesmo um alforriado, está viva e atualizada no “Emparedado”, sendo sua voz amplamente repercutida nas vozes de inúmeros escritores, artistas e intelectuais que hoje escrevem e reverberam o tema do racismo, da etnicidade e da discriminação. 


Para Neusa, após ter lido pela primeira vez o poema do escritor catarinense, além das sensações e imaginações evocadas, “um misto de saudade, desejos e alegrias”, o texto a levou a uma reflexão profunda. Ela declara ter empatizado o drama do artista, sua ânsia pela liberdade, sua condição de emparedado no ambiente preconceituoso e opressor no qual vivia à época. E sobretudo, a atualidade dessas inquietações, para nós que buscamos melhor compreender a multiplicidade cultural da nossa literatura, quais passos percorremos até aqui, ou o que leram e quais as referências dos escritores que hoje escrevem em Santa Catarina.

Coração Desordenado

Ainda sobre a experiência da leitura, a poeta Ana Oliveira, também lida nesta série, presenteia-nos com um depoimento que resume uma pesquisa de dissertação de Mestrado na área de Linguística e Literatura. “É proibido ler. Talvez se a leitura nos fosse proibida (ou voltasse a ser) comeríamos livros. Comeríamos página a página, de forma demorada, degustando os encontros entre os ‘as’ e os ‘bês’. Devoraríamos loucamente os machados e as clarices, depois vomitaríamos borboletas ciumentas e macabéas com finais felizes. Começo este texto com uma metáfora ‘antropofágica’ para exemplificar o assunto que me traz aqui, a leitura de textos literários. A metáfora de leitura nasce no ponto exato em que se cruzam história e atualidade, ou seja, a metáfora parece se materializar na colisão entre o passado e o presente, e isso produz um novo sentido a aquilo que lemos, através do cruzamento entre o que se está lendo e o que já fora lido. Quero dizer com isso que, quando estou lendo Dom Casmurro, por exemplo, o sentido que conduz a minha leitura pode ser a suposta traição de Capitu, mas, para outro leitor, pode ser os ciúmes de Bentinho. Assim, cada leitura é um mundo único e particular para cada leitor. Em um tempo em que a efemeridade dita as regras, a literatura se torna um abrigo seguro para o diálogo interior, para a desaceleração quase que vital, em meio às exigências da vida contemporânea. E aqui chego no ponto central deste relato, o modo como lemos.”


A autora dos poemas “O corpo da bruxa” e “Coração desordenado”, lidos no "Página Sonora", desenvolveu em seu mestrado a ideia da leitura como melancolia. Aqui ela nos explica um pouco desse seu pensamento. “Penso que todo leitor lê lembrando, lê conectando o presente com o passado no desejo, inconsciente, de restabelecer o vazio instaurado no presente, pela memória. E tal movimento, que acaba por causar uma falta, um desconforto ao se refletir sobre a vida, é realizado desde a infância, ou seja, o leitor já faz isso, apenas não se dá conta, por ser uma cinesia involuntária. E esta leitura provoca uma inquietação no leitor, uma ruptura que pode levar à ressignificação do presente, e por que não dizer, da vida.” E Ana completa reafirmando a leitura como uma espécie de poder, porque abre espaço para a desautomatização da vida e do pensamento, criando assim um canal entre o passado e o presente. Lembrando por fim que esse gesto, que o leitor realiza quase sempre de maneira distraída, nem sempre é feliz - acontecem rupturas, sobrevém a melancolia – mas o conecta profundamente consigo mesmo e com seu tempo.


Rumor da casa

Telma Scherer é contemplada com a leitura de dois poemas de “Rumor da casa”, escrito entre 2005 e 2008, e segundo a autora, em um momento de solidão, principalmente, enquanto presença feminina nos eventos literários, majoritariamente masculinos, no sul do Brasil. E a percepção dessa solidão fazia-se ainda mais contudente para alguém que, como a própria escritora relata, estava abordando as questões de gênero de uma maneira mais direta.

Ela nos conta um pouco desses percursos nos saraus e da vocalidade da poesia que vem exercendo desde o início de seu trajeto com a escrita. “Meu trabalho literário parte do corpo, e a vocalidade é um aspecto que desenvolvo desde que comecei a escrever. Posso dizer que minha principal formação literária se deu em saraus. Com um grupo de amigos, organizei saraus periódicos em Porto Alegre, durante mais ou menos uma década, a partir do final dos anos 90. Ouvir diversos autores, trocar livros e referências, mostrar meus rascunhos em público foram atividades que me auxiliaram muito. Pude perceber questões técnicas, como o uso que estava fazendo dos recursos sonoros da linguagem, e também a recepção concomitante oportunizava uma recolha de reações, comentários e sugestões.”

Telma relembra o laboratório desenvolvido com o grupo Teia de Poesia e de seu começo como escritora ao mesmo tempo em que atuou no teatro amador, enfatizando seu interesse nas expansões da poesia em performance. Observa ainda que o livro Rumor da casa foi a primeira oportunidade de realizar um trabalho solo, e que performar e escrever aconteceu concomitantemente. “Ministrei diversas oficinas de poesia e performance, no contexto do projeto que oportunizou a publicação pela editora 7 Letras. A performance Rumor da casa foi realizada nas mais diversas situações: de bares, associações de bairro e clubes de mães a teatros e festivais literários como o Arte en loberías, no Cabo Polonio, Uruguai, na beira da praia, ou no Agosto das Letras, em João Pessoa, em um palco montado em uma rua, no centro da cidade.”, declara.

Squirt, última publicação da autora, pela Terra Redonda Editora, foi semifinalista do Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2020, abordando questões de gênero, como a violência contra a mulher e os desejos das mulheres. Segundo ela própria, Squirt é seu livro mais feminista.

A felicidade dos gafanhotos e outras crônicas

Paulino Junior, entre as cinco leituras, é o autor que traz a esta série do "Página Sonora" o tom da ironia, o ritmo da crônica, a coesão lapidada do conto e um tema eleito: o trabalho. “Costumo dizer que minha esfinge é o ‘mundo do trabalho’: “Decifra-me ou devoro-te”. Porém, tão fundamental quanto o confronto com o tema – a criação de personagens complexas que coloquem questões pertinentes à nossa existência em sociedade –, é o tratamento dado ao texto. Ou seja, a disposição harmoniosa das palavras a criar uma estrutura rítmica. Chego a escrever com o propósito de ser ‘ouvido pelos olhos’.” 

O conto de Paulino nesse episódio, é uma experiência sensorial, é possível enxergar o público, o palhaço e o leão no picadeiro, é possível ouvir a música, as vozes da plateia, é quase uma cena de cinema daquelas que evocam o circo na sua face mais triste e cruel, apesar de, paradoxalmente, nos trazer também a beleza, o humor e a festividade circense. O livro A felicidade dos gafanhotos e outras crônicas, onde consta o episódio lido, O leão e o palhaço, assim como Todo maldito santo dia, outra publicação do autor, revela esse ‘mundo do trabalho’ por um viés que nos permite enxergar na literatura muito do que foi percorrido pelas teorias filosóficas, porém, de um ponto de vista mais libertador e divertido, e com teor crítico e contestatório digno de um manifesto.

O contista relata sua satisfação em ter seu trabalho apresentado em formato de áudio, no "Página Sonora", “uma excelente oportunidade de fazer avultar um elemento que parece secundário na composição textual, mas que tem função estruturante em meu projeto estético”, completa. E aproveita a oportunidade para comunicar em primeira mão sua nova aventura: Tripalium Ópera, que consiste na leitura dos seus contos, realizada por ele próprio, com cenografia sonora do músico e artista plástico Cesar China.

As bruxas do lago Léman

Falando em aventura, outro dos autores que foi lido no "Página Sonora" enveredou no mundo da pesquisa radiofônica e seu trabalho pode ser conferido no Swiss Gigs PodCasts, sobre literatura, e no Culture Bossa, sobre música. Flávio Dias tem um trecho de “As bruxas do Lago Léman” lido neste último episódio de 2020. Publicado pela Editora Micronotas, o livro traz um instigante enredo que une cinema, poesia, um lago entre Suíça e França, Santa Catarina e bruxas do passado e do presente.

Ficamos por aqui com uma breve declaração poética de Flávio Dias sobre sua relação com a escrita, com os PodCasts, com a língua francesa, sendo ele radicado na Suíça, e sobre nosso projeto "Página Sonora". “Venho entendendo mais e mais que o tempo se estende, às margens do infinito, enquanto escrevo. Evito os telefones inteligentes onde me perco em labirintos demasiado úteis. Nesses entre-caminhos, há a beleza angelical dos Podcasts. Produzo, concebo-os, dois por semana, aqui, nesse país onde, há vinte anos, vivo - à beira desse lago que amo de um amor de estrangeiro. Coloco em francês as bruxas que escrevi, esperando sempre perdê-las para melhor encontrá-las. Penso no belo arcaico das suas línguas. Assisto a filmes e leio muitos livros. Às vezes, entristeço-me pensando nas livrarias gritando nos aeroportos do Brasil. Agradeço a leitura, e penso no "Página Sonora" como em um anjo-da-guarda marítimo navegando esperanças.”

Acompanhe nossas leituras no "Página Sonora". A cada quinze dias, novas leituras e a promessa de novas emoções despertadas pela diversificada literatura feita em Santa Catarina.

Nosso próximo episódio será em 2021. No dia 08 de janeiro, apresentaremos as leituras de Dennis Radünz, Ana Elizabeth, Lindolf Bell, Carlos Henrique Schroeder e Bruna Barreto. Vale muito à pena conferir a estes e aos muitos outros episódios que virão e aos que já estão disponíveis!

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Como surgiu "Página Sonora"

A iniciativa "Página Sonora" vem sendo construída desde novembro de 2019, quando os assistentes de biblioteca e alguns técnicos de cultura do Sesc Santa Catarina realizaram um encontro com o objetivo de debater e reinventar caminhos para a efetiva formação de leitores críticos e contumazes, com conhecimento e reconhecimento do que é a experiência da leitura. E para que essa transformação de fato aconteça, há longos caminhos a serem percorridos, começando por capacitar a equipe de assistentes de biblioteca para mediação do livro, da leitura e da literatura.

Surgiu então a necessidade de buscar compreender a maior carência e urgência dentro de um universo tão vasto. E dentre as inúmeras sugestões, possibilidades, alusões e argumentações, uma tarefa ficou clara e unânime: ler, reler, conhecer, discutir e então, dar acesso aos leitores ou ainda não leitores, à escrita produzida em Santa Catarina. Os projetos e eventos planejados para 2020 com essa finalidade e tantas outras demandas, desde revigorar a literatura voltada para o público infantil até tornar a biblioteca um espaço cada vez mais de acolhimento, fruição, informação e diversão, foram adiados com a pandemia. Mas aos poucos, com o afeto e a persistência necessários a quem trabalha com cultura em nosso país, os meios foram sendo criados e uma parte das muitas tarefas daquele encontro se concretiza no "Página Sonora".

Texto de Luciana Tiscoski, técnica de Cultura do Sesc Estreito (Florianópolis) e Palhoça, e colaboração de Marilaine Hahn, analista de Cultura do Departamento Regional do Sesc Santa Catarina.

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