Criação poética, confinamento, esquinas, ilhas, armas e letras no podcast “Página Sonora” nº 8


12/03/2021 - Atualizado em 25/03/2021 - 521 visualizações

O "Página Sonora", podcast da literatura feita em Santa Catarina, através da Rede de Bibliotecas do Sesc-SC, é um projeto dedicado inteiramente a autores que aqui tecem ou teceram suas histórias, seus relatos, pensamentos, pesquisas, diálogos e trocas, nos mais variados gêneros, estilos e linguagens.

Eduarda Vidal, Priscila Lopes, Caio Ricardo Bona Moreira, Luciana Tiscoski e Sérgio Medeiros são os autores em destaque nesta semana. São dezenas de nomes do percurso literário catarinense contemplados no acervo.

Eduarda Vidal

Para Eduarda Vidal poesia é onde sua alma se sente em casa. E percebe-se que a poesia é natural e leve não apenas em sua produção escrita, mas também exsurge sem esforço nos relatos sobre seu processo criativo. “Ler poemas foi um passo que manifestou tudo o que em mim entendia como avesso. Administrar inquietações em silêncio, aceitar que havia coisas inomináveis, naturalizar o que não deveria ser naturalizado”, reflete a autora de Subestimados: poesia e jiló, do qual são retirados três poemas para leitura nesta temporada do “Página Sonora”.


E embora haja delicadeza e um olhar atento e demorado sobre as pequenas coisas cotidianas, Eduarda pondera que a matéria da poesia, “o que não deveria ser naturalizado - contestado por Brecht no poema “Nada é impossível de mudar””, trazia-lhe a sensação de um mundo que não valia a pena. Trata-se de sua experiência com o fazer poético, da relação com esse seu primeiro livro, “sobre (ou para) os descartados”. E nessa fala, além de Brecht, poderíamos pensar na história contada pelos vencidos de Walter Benjamin, a história a contrapelo, mas uma história bem simples, um fragmento, como a pausa para tomar café quente num copo de requeijão.

Com simplicidade profunda, atributo de bem raros poetas, Eduarda deixa aqui sua reflexão que é quase um poema. “A poesia é intimidade. A literatura, eu não sei. Em meu imaginário de repetente da oitava série, a literatura não é pra mim. É para doutoras, pessoas dedicadas, disciplinadas e com melhor autoestima que eu [risos]. Sou leitora, amiga dos livros e admiradora dos que leem e escrevem com devoção. Continuo, hoje, vasculhando a grandeza do que poderia ter sido e não foi. Como uma árvore centenária tombada. E espero transformá-la em mais livros.”

Priscila Lopes

E afinal, poesia continua reverberando em todos as temporadas do “Página Sonora”. Priscila Lopes revela a sua, em conto. Uma flor de menino, da publicação O livro espantado, pode ser ouvido nesta temporada de podcasts. A poeta brasiliense, radicada em Florianópolis, também nos conta um pouco de seu processo criativo. “Não há no mundo uma só razão para que eu escreva. Escrevo porque não posso evitar. Ainda que encontre nisso, admito que sim, algum prazer. Ainda que possa pensar em motivações para escrever. Não é um propósito de vida para mim: é um exercício de vida.”


Um certo tom de melancolia está presente em seu depoimento, reflexo desses dias de confinamento e incertezas. “Quando ouço depoimentos de pessoas encarceradas, a primeira indagação que me surge aguda e urgente é: em seu lugar, como faria para escrever?”. Assim como Eduarda evoca Brecht, Priscila traz o nome de uma de suas afinidades eletivas citando o trabalho de Arthur Bispo do Rosário que a impactou justamente por essa capacidade de produção no cárcere. “Digamos assim: ler é a ferramenta que me lança ao espaço atemporal, para que eu me extrapole. Escrever é o que me estrutura e me mantém. Tenho a impressão de que sem a escrita, me perderia. Talvez simplesmente vivesse, de forma disparatada e insossa, sem apreensão do mundo ao redor”, declara.

Caio Ricardo Bona Moreira

Caio Ricardo Bona Moreira surge no “Página Sonora” trazendo ecos do dia Internacional da Mulher, comemorado há pouco. Vale muito a pena conferir o fragmento do conto Mimi Amazonas Júlia Amazonas, do livro Esquinas, que ganha corpo na voz de Kamila Debortoli. O livro é um passeio por lugares, reminiscências, pessoas; são esquinas de encontros os mais inusitados, numa escrita cujo ritmo é quase um convite ao flanar por diferentes tempos. Mais uma vez, Benjamin é referência que se apresenta nas entrelinhas.


E a clausura é o tema recorrente desses processos de escrita. “Tinha um livro do meio do caminho da rua. Era o "Esquinas". Ele me ajudou a encarar esses tempos de clausura que estamos, aliás, ainda atravessando. Foi uma forma de pensar (a)través da literatura, de praticar uma manobra de flanco para contornar a saudade da rua, para matar a saudade da cidade e das gentes. Estar em uma encruzilhada é estar em um lugar de crise, mas não deixa de ser uma oportunidade de vislumbrar a perspectiva de uma outra via. Perambulo logo sou.” E a esquina desdobra-se em muitas camadas de sentidos, quando o autor desvela uma de suas maneiras de pensar seu caminhar literário, nem sempre um flanar tranquilo: “A literatura é essa curva em ângulo aberto pra driblar o perigo ou encarar de frente o viés.”

Luciana Tiscoski

“O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?”, questionava Walter Benjamin em suas “Teses sobre o conceito de história”. Trata-se de conjurar os mortos e as vozes silenciadas que não puderam contar sua própria história, da impossibilidade de olhar para trás para compreender o tempo presente, como o anjo de Paul Klee, também citado por Benjamin.

Trata-se da amarga constatação de que trilhamos ainda um caminho onde documentos de barbárie contam uma história de revoltas não contadas. É sobre essas revoltas que as poetas do coletivo Abrasabarca tecem seus poemas no livro Revoluta, publicado em 2019, pela Caiaponte Edições, de Marcelo Labes. É o segundo livro publicado pelas autoras, sendo que desde o primeiro, de nome Abrasabarca, vigora uma comunicação ininterrupta entre essas escritoras que criam coletivamente, e trazem no cerne de seu trabalho, o cultivo da poesia lida em voz alta, nas ruas, bares e eventos culturais da ilha e de outras cidades.

Neste episódio, o poema "Sal grosso", de Luciana Tiscoski está presente representando o coletivo. Emprestamos aqui a palavra a Telma Scherer, escritora já lida no “Página Sonora”, que escreve no prefácio de Revoluta: “Neste segundo livro, ao perguntar pela revolta, as poetas vasculham as gavetas de si mesmas, o sangue que move os seus corpos, analisam as últimas notícias e a conjuntura movente dos dias que pesam. E se erguem, fazem com que a revolta renasça em nós, leitores e ouvintes. É disso que precisamos: dos adensamentos de vozes, dos sons do abraço e da brasa quente construindo com o seu sopro uma revolta sempre renascida.”

Sérgio Medeiros

Sérgio Medeiros está nesta temporada com o episódio Figurantes, livro de poemas que versam sobre uma ilha que se parece com a ilha Desterro, onde o poeta reside atualmente. Mas há diferentes maneiras de olhar para essa ilha. É o que nos revela Sérgio nos poemas e aqui no seu depoimento. “Essa ilha é vista da perspectiva dos inumanos (os figurantes): insetos, árvores, capim... E fantasmas... Por trás dessa pequena ilha brasileira, situada no Atlântico, existem reflexos de outras ilhas, grandes ilhas: Japão, Cuba, Inglaterra, Irlanda... São ilhas com as quais dialogo por meio da poesia que produzem”.

As ilhas estão também em seu livro mais recente, O acumular, lançado no formato digital pela editora Iluminuras. Além das ilhas, estão no livro os continentes e o ir e vir de personagens, por exemplo, entre Florianópolis e o Brasil Central. O mote das ilhas e do continente vai além de um tema imagético, que descubra outras possibilidades quem se aventurar na leitura de sua escrita e nas suas experimentações com as artes plásticas. “Mantenho-me fiel, como se percebe, à noção de ilha, a qual sempre está presente nos meus escritos poéticos, mas o continente também exerce um papel na minha poesia, pois ele me permite discutir a sensação de estar ilhado também em terras vastas”, divaga o autor.

Essas autoras e esses autores estão presentes nas leituras da temporada oito do “Página Sonora”. E lá você também pode ouvir Lindolf Bell, Telma Scherer, Marcelo Labes, Patrícia Galelli, Carlos Henrique Schroeder e muitos outros, num acervo que cresce a cada 15 dias!

Acesse os links do podcast nas principais plataformas:

Como surgiu o "Página Sonora"


 A iniciativa "Página Sonora" vem sendo construída desde novembro de 2019, quando os assistentes de biblioteca e alguns técnicos de cultura do Sesc Santa Catarina realizaram um encontro com o objetivo de debater e reinventar caminhos para a efetiva formação de leitores críticos e contumazes, com conhecimento e reconhecimento do que é a experiência da leitura. E para que essa transformação de fato aconteça, há longos caminhos a serem percorridos, começando por capacitar a equipe de assistentes de biblioteca para mediação do livro, da leitura e da literatura.

Surgiu então a necessidade de buscar compreender a maior carência e urgência dentro de um universo tão vasto. E dentre as inúmeras sugestões, possibilidades, alusões e argumentações, uma tarefa ficou clara e unânime: ler, reler, conhecer, discutir e então, dar acesso aos leitores ou ainda não leitores, à escrita produzida em Santa Catarina. Os projetos e eventos planejados para 2020 com essa finalidade e tantas outras demandas, desde revigorar a literatura voltada para o público infantil até tornar a biblioteca um espaço cada vez mais de acolhimento, fruição, informação e diversão, foram adiados com a pandemia. Mas aos poucos, com o afeto e a persistência necessários a quem trabalha com cultura em nosso país, os meios foram sendo criados e uma parte das muitas tarefas daquele encontro se concretiza no "Página Sonora".

Texto de Luciana Tiscoski, técnica de Cultura do Sesc Estreito (Florianópolis) e Palhoça.

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